PFC Crônicas 3 – Correr é coisa da sua cabeça
Por Ana Carol Sommer
Leitura de 5 minutos
Foco e concentração são essenciais para alcançar grandes resultados. Qual é o seu plano de jogo para acumular conquistas na corrida?
Começo nossa conversa desta semana com uma afirmação estilo verdadeiro ou falso para você, leitor ou leitora, que nos acompanha no Por Falar em Correr:
Correr é simples. Basta um par de tênis e uma boa dose de motivação inicial que a força de vontade faz o resto. Será?
Por mais físico que seja o ato de correr, a nossa cabeça tem um papel importante. O cérebro é o centro de controle para tudo que nosso corpo é capaz de fazer, voluntária ou involuntariamente. Isso me fez pensar sobre provas que já corri e que considero terem sido bem-sucedidas dentro do que havia definido como objetivo. Qual foi o segredo? Quais foram as condições que me permitiram bater a meta? E o que minha cabeça teve a ver com isso tudo?
Nem meia nem maratona na terra da garoa
Em 2011, participei da corrida de 25km dentro da maratona de São Paulo. Treinava com um ex-triatleta, daqueles que são obcecados por performance. Logo, nem preciso dizer que a preparação foi carregada de certas divergências de opiniões. Em alguns dos meus treinos, ele me acompanha e não perdoava quando eu saía do programado ou inventava de fazer coisas que não agregavam nada à corrida, como uma aulinha de Muay Thai, por exemplo. Entre tapas e high fives, confiei no método dele e me joguei nos 25 km.
Quando o final de semana do dia D chegou, meu treinador me passou as instruções :
Ana, você vai fazer uma corrida cerebral! Pensei: Oi? Pode desenhar, por favor?
Prazer, split negativo!
Na hora, achei meio confuso. Por que corrida cerebral? Até então eu só tinha corrido. Ponto. Mas depois entendi que ele estava, na verdade, me propondo um split negativo, ou seja, correr a segunda metade da prova mais forte que a primeira. Seria uma estratégia de aumento progressivo do ritmo, em blocos que ele havia definido de forma bem precisa. Começaria num pace de 6’ e chegaria no final em 5’15”.
São Paulo nunca é uma cidade tranquila de se correr, mas para uma curitibana, não intimidava também. Dada a largada e lá fui eu, colocar a tal da corrida cerebral em prática. Segui a estratégia e quando cheguei ao último bloco, confesso que me sentia já no limite das minhas forças. Mesmo assim, antes de entregar o jogo, parti para a guerra. Cheguei no ritmo mais forte para os últimos 5 km, como previsto. Ali começou a batalha mental, porque até hoje fazer força é um desafio para mim.
Batalha mental – volume 1
Olhava o relógio, para ter certeza de manter a velocidade-alvo, tentando me convencer que estava tudo sob controle e que era possível. Fora que o orgulho me impediria de vir de desculpinhas se não tivesse de fato feito o melhor que podia. O coração parecia que ia sair da boca, mas segui focada, negociando com minha cabeça, sabendo que logo esse martírio terminaria.
Para minha grata surpresa, consegui fechar num tempo que considerei excelente: 2h19’, ou seja, um pace em torno de 5’35”. Para essa corrida, não havia previsto um objetivo de tempo, mas levando em conta a dificuldade da prova e a estratégia de aumento progressivo até então inédita, considerei que foi um sucesso. A cabeça colaborou. A chave foi executar o plano, dosando a energia. Deu certo!
Nas curvas da estrada da Graciosa
Outra prova em que também consegui realizar a tal da corrida cerebral foi a agora extinta Subida da Serra da Graciosa. Coincidência ou não, acredito que também em 2011. Eram 20km largando da cidade litorânea de Morretes subindo cerca de 13km sem parar até a altura de Curitiba, com mais 7 km de sobe e desce até a chegada. Minha primeira experiencia nessa prova foi em 2007, com um ano de corrida no currículo. #aloka
Sem traumas após a primeira experiência, repeti a brincadeira mais 3 vezes, sendo que numa delas, resolvi que completaria abaixo de 2 horas. Tinha conseguido 1º lugar na categoria no ano anterior fazendo pouco acima desse tempo e sem nem esperar por esse resultado. Por que não tentar um sub-2?
Na época, treinava triathlon, mas não mais com o mesmo treinador da conquista de São Paulo. Dessa vez, meu técnico triatleta era mais estilo “paizão” e nem por isso menos exigente nos treinos. Sei que para correr bem, a gente precisa treinar corrida. Mas nadar parecia me dar mais energia e aumentar a minha resistência. Foi uma época de alguns recordes pessoais, inclusive.
Para o alto, quem é que ajuda mesmo?
Depois de um ciclo de treinos específicos, mais uma vez Ana Carolina se preparava para subir a estrada que Dom Pedro I em sua carruagem real havia usado na época do Brasil Colônia. Encontro meu técnico e ele me diz:
Ana, hoje você vai correr com o Chiquinho. Ele vai te puxar!
Pensei logo num garotão daqueles bem magrinhos, que tiram potência muscular sei lá de onde. Pois bem, o Chiquinho era na verdade um senhor de uns 55-60 anos, mas com o vigor físico do garotão que havia imaginado. Tinha ali um corredor experiente como coelho, um privilégio! Detalhe: não sabia que meu treinador tinha planejado isso para mim. Deu medinho de não dar conta… confesso! Valorize sempre quem é mais rodado!
Começamos a subir e eu na cola do Chiquinho. Na serra tem muita neblina, então chega um momento em que parece que a gente morreu e foi para o céu. Eu e Chiquinho, firmes e fortes na ascensão celestial da minha cabeça, rumo à consagração. Olhava o relógio e pensava: o que eu vim fazer aqui, Senhor? Faltando uns 3km para acabar a subida, falei para o Chiquinho tocar porque eu seguiria sozinha a partir dali. Chiquinho sumiu na neblina e fiquei só com meus pensamentos.
Batalha mental – volume 2
De novo a batalha mental. Sabia que estava bem e que talvez tivesse reduzido o ritmo, colocando em risco meu objetivo. Segui um passo de cada vez, me concentrando em avançar e acabar com aquela subida “abençoada”. Quando finalmente o estímulo mudou e descidas apareceram, eu parecia um trem desgovernado ladeira abaixo. Zero controle das pernas, elas queriam se libertar da repressão da subida, eu acho.
E adivinhem? Fechei em 1h59, ou seja, pouco abaixo de 6’ por km numa prova como essa, sucesso total. Não deu pódio nesse ano, fiquei em 4º lugar na categoria. Mas não importava, objetivo alcançado e um grande sentimento de realização. Novamente minha cabeça disse presente, sou capaz, e fomos felizes!
O segredo é…
Com essas experiências, entendi que para garantir o melhor resultado que posso obter no dia D é correr no momento presente e com um plano em mente. É a tal teoria do flow de Mihaly Csikszentmihalyi:
“Um estado mental que acontece quando uma pessoa realiza uma atividade e se sente totalmente absorvida em uma sensação de energia, prazer e foco total no que está fazendo. Em essência, o flow é caracterizado pela imersão completa no que se faz, e por uma consequente perda do sentido de espaço e tempo.”
Claro que toda preparação conta e que o resultado será proporcional à dedicação aos treinos de corrida e à disciplina no dia a dia. Prazer mesmo a gente talvez só sinta quando o resultado é alcançado. Mas como no provérbio popular: Treino é treino. Jogo é jogo. O plano ajuda a dar um norte, mas na hora H, o lance é saber improvisar e trabalhar muito a nossa força mental.
Podemos até correr com as pernas, monitorar a frequência cardíaca, o ritmo. Mas se a cabeça não entrar no jogo a nosso favor, talvez cultivemos mais decepções do que alegrias na corrida. Os treinos ajudam a desenvolver a confiança, mas preparados mesmo nunca estaremos se não nos colocarmos à prova e isso vai além da condição física de cada um.
Voltando à afirmação inicial… Correr é simples. Mas às vezes a gente mesmo se complica. É tudo coisa da nossa cabeça.
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A bendita cabeça!!! Sim, para mim a cabeça manda e o corpo só obedece!! Isso acontece nos treinos, nas corridas e na vida mesmo!!
Normalmente, o dia anterior aos treinos (seja de corrida, fortalecimento ou mobilidade) eu olho a planilha (que eu mesmo estou montando graças aos ensinamentos do PFC) e “visualizo” o treino mas faço isso várias vezes durante o dia anterior e também no dia mesmo do treino.
Esse hábito está me ajudando muito para controlar a ansiedade (sim, sofro de ansiedade e já teve uma vez que fui parar no hospital por causa da ansiedade e o estresse, os sintomas foram bem parecidos aos de um ataque cardíaco) e a corrida tem ajudado à minha cabeça entender como lidar com isso.
Desde que retomei a corrida aprendi a lidar melhor com os possiveis ataques de ansiedade e isso me ajuda também no meu trabalho (trabalho na área de vendas, e por incrível que pareça ainda fico nervoso antes de alguma reunião com cliente ou apresentação).
Nossa cabeça ajuda ou atrapalha, e na minha opinião depende das expectativas que você coloca para o resultado final! Trato ao máximo “manerar” as expectativas para manté-las o mais realistas possíveis e assim vamos indo aos poucos!!!
Obrigado por compartilhar, mais uma crônica gostosa de ler!
William, sempre muito legal essa troca com você e nosso pool de treinadores do PFC. A ansiedade é realmente um problema para muitas pessoas. Essa coisa da incerteza do futuro e da falta de controle sobre coisas que não dependem apenas de nós pode ser muito desafiadora, principalmente para a saúde mental. A corrida é algo que nos ajuda demais a trabalhar a nossa flexibilidade mental. Os treinos estão aí para isso, mas o mais importante é sentir a tranquilidade de ajusta-los segundo as circunstâncias. Colocar em pratica uma rotina estruturada certamente ajuda a desenvolver disciplina e confiança. Fique atento aos sinais e assim vc aproveita o melhor que a atividade física tem a nos oferecer. A gente acredita em você! Obrigada pela leitura. Abraço carinhoso.