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PFC Crônicas 1 – Correr pra quê?

Foto Ryan McGuire via Pixabay

Por Ana Carol Sommer

Leitura de 6 minutos

Ao som da Rita Lee, relembre comigo minha primeira prova de 10 km e junte-se à incrível comunidade de corredores.

Um belo dia resolvi mudar

Era uma tarde de maio em 2006. Eu tinha 24 anos e me encontrava na infeliz situação de muitos brasileiros: desempregada. Desmoralizante, é certo, mas por outro lado quem nunca desejou a dádiva do tempo livre quando o trabalho exigia demais? Dentre todas as possibilidades que se abriram, decidi usá-lo de forma nada eficaz com um filme de Sessão da tarde. O que me marcou naquele dia, no entanto, foi a propaganda de segundos anunciando a 4ª Corrida do centro histórico de Curitiba.

Em duas semanas, corredores largariam em frente ao Passeio Público e, pasmem, eu resolvi naquele exato momento que seria uma entre eles. Segue minha “lógica” para a tomada de decisão.

Considerando o bônus do tempo livre por que não me lançar a um desafio inédito?

A cabeça estava a mil com dúvidas sobre que caminho seguir na minha carreira então claramente fora dos trilhos. A resposta era simples: percorrer um trajeto do ponto A ao ponto B com a missão de completá-lo sem pensar na componente velocidade. Isso era muito mais concreto, racional, diria que genial até… ainda que não passasse de uma hipótese elaborada por uma pessoa que nunca havia corrido 1 quem dirá 10 km sem parar. Sabia de nada, a inocente…

A única orientação que tive veio de um professor de musculação da academia que eu frequentava: correr 6 km todos os dias até o dia da prova. Assim iniciei minha relação de amor com a esteira, esse equipamento que tantos abominam, mas que para mim foi a salvação inicial. Precisava simular o esforço em condições controladas, porque não tinha Garmin, nem noção de distância ou percepção de esforço, morria de medo de ser atropelada na rua e poderia apertar aquele botão vermelho de emergência a qualquer momento, se necessário fosse. Completei minha preparação desse jeito, não me importando muito com o resultado.

Primeira lição sobre se apaixonar pelo processo. Anote, aí!

E fazer tudo que queria fazer

O grande dia chegou e meus pais foram me ver. Sim, pedi a meus pais que me acompanhassem porque torcida nunca é demais, mesmo que o pódio não seja realista. Fui para a largada e me posicionei onde? Claro que logo ali na linha de frente (contém ironia). Uma moça ao meu lado puxou conversa e falei que era minha primeira corrida.

Ela se empolgou e contou da primeira vez dela mostrando uma cicatriz no joelho, marca da primeira largada nas fileiras da frente, consequência de um empurrão seguido de queda pós estouro da boiada. Visualizei o cenário, mas não deu tempo de rever a estratégia ou o posicionamento porque o “berrante” tocou e lá fui eu, sem incidentes ou acidentes. Ainda bem.

Logo no início, me senti especial. No lugar dos carros, nós, os corredores, dominávamos a faixa central das ruas e avenidas. No som de fundo, aquele barulho pesado das passadas que se misturam com a respiração ofegante e eventuais gritos de incentivo de pedestres curiosos. Usava o cronometro do me relógio Timex, batendo o tal do lap (volta) que depois aprendi ser o tal do pace (ritmo) a cada plaquinha de quilometragem da organização.

Após apenas 2km que pareciam já quase 4, entendi que o tempo passa diferente e diria até mais devagar quando você acha que já correu muito. Mas, quando menos a gente espera, acabou. A tarde daquele domingo foi reservada ao repouso da guerreira. Parecia que tinha feito o esforço mais descomunal de todos os tempos, o que de certa forma foi considerando duas semanas de treinos aleatórios.

E fui andando (digo, correndo) sem pensar em voltar

Primeira medalha de participação conquistada. Fácil, não foi. Impossível, também não. E assim decidi que valia a pena continuar buscando essa recompensa que vem a cada linha de chegada que fica para trás. De repente o calendário não serve apenas para marcar a passagem do tempo ou os compromissos protocolares da vida social. Domingos se tornam dias em que o coração que vai sim bater mais acelerado, logo pela manhã.

Graças à constância, a gente vai dando sentido e ressignificando essa história de se tornar corredor. Afinal dizem que somos o que fazemos repetidas vezes, não é mesmo?

Existe muita humanidade e parceria no ato de correr, mesmo que em alguns momentos a gente precise mesmo é ficar só com nossos pensamentos. A identificação com essa tribo acontece quando, além dos resultados individuais, outras pessoas com loucuras similares entram para a nossa vida. Pessoas que compartilham as dores e alegrias de correr.

Seja para cumprir a planilha ou apenas aquela terapia boa em ritmo solto, tem dias em que a gente quer mais acolhimento em movimento e menos sangue nos olhos. Devagar se vai ao longe, mas em equipe a gente certamente tem mais histórias para contar. A corrida confirma que pertencer é preciso.

A constância e o pertencimento levam, invariavelmente, à disciplina. E nada melhor do que um bom treinador para nos colocar no devido lugar. Claro que não é um fator determinante para que um corredor desenvolva sua autodisciplina, mas o chicotinho de quem sabe o que está falando gera resultados mais expressivos e aqui não falo apenas de alta performance. Falo de longevidade no esporte, de empatia, de parceria, de sonhos que se multiplicam. É uma relação importante e que deve ser levada a sério, afinal quem ensina também aprende e vice-versa.

Agora só falta você

Há 17 anos, venho criando um repertório de provas, de tempos, de distâncias, com um desejo de continuar progredindo. As minhas razões para correr se transformam com o tempo, assim como meu corpo e mentalidade. E a cada novo objetivo, aprendo mais sobre o que realmente importa para mim. Em tempos de redes sociais, as referencias e comparações podem nem sempre ser as mais adequadas ou saudáveis.

O que vale é o que se faz quando ninguém está vendo. São essas situações invisíveis que forjam nosso caráter de corredor.

Na minha opinião, o melhor da corrida é o que acontece nos bastidores: a noite anterior mal dormida com medo de perder a hora; a contagem regressiva que antecede uma largada; o encontro com o “muro” da maratona; o plano que sai errado apesar de um ciclo perfeito e como a gente reage; aqueles segundos em que os monstrinhos aparecem, mas que somem com incentivos de desconhecidos; a comemoração da chegada; as lágrimas como evidências de que, sim, tudo é possível e só eu sei o que precisou ser feito para chegar até ali

Por isso, razões não me faltam para correr. Corro para me distrair, para me disciplinar, para fazer amigos, para me encontrar, para viajar para lugares que não conheço, para viver novas histórias, para me superar, para me fortalecer, para sofrer em silêncio, para me emocionar, para me cuidar, para me sentir bem com meu corpo e o que só ele pode me proporcionar, para jamais me acomodar, para me manter em movimento, para entender que sempre dá para ir mais longe. Não existe razão boa ou ruim para correr desde que você continue na direção de quem você quer se tornar.

E você? Corre pra quê?


No episódio 599 do PFC Debate, um de nossos ouvintes nos lançou a questão que dá tema à esta primeira crônica. Participe ao vivo com a gente toda 5ª feira às 19 horas de Brasília pelo YouTube e quem sabe você não me inspira a escrever sobre mais histórias de corrida. Os episódios do PFC Debate se transformam em podcast disponível no Spotify. Não esqueça que você pode também se tornar membro da nossa comunidade de apoiadores por apenas R$1,99 por mês!

 

5 thoughts on “PFC Crônicas 1 – Correr pra quê?

  1. Parabéns pela bela crônica e escrita!! Gostei muito de saber como foi o início!
    Meu início na corrida foi meio conturbado, eu na verdade pedalaba com um grupo de MTB, mas o grupo se desfez e para manter a cabeça “no lugar” comecei correr lá por 2005 também minha primeira corrida foi uma prova de 10km (a camiseta está comigo até hoje) e foi assim até 2008 que mudei de Colômbia para Brasil a trabalho. Aí desandou tudo… o trabalho era exigente e perdi a corrida como prioridade!
    Reencontrei a corrida em 2018 depois de ficar desempregado e sem “rumo” com muito tempo “livre” e para não cair na depressão comecei correr de novo e agora não largo mais!

    1. Obrigada pelo comentário e por compartilhar sua história com a gente, William. Quando a corrida tem uma importância na nossa vida, sendo praticamente um organizador do nosso caos interno, ela sempre volta ao top 3 das nossas prioridades. Espero que continue assim, mas se precisar mudar algo, diminua o ritmo. Ande se for necessário. Mas não pare! Abraço carinhoso. 🫶🏼

  2. Olá, parabéns pelo texto e pelo trabalho de todos do Por Falar em Correr. A primeira motivação minha para correr foi buscar melhorar a saúde. Fui fumante por 30 anos e ano passado em abril saí desolado de uma consulta médica porque sai com diagnóstico de diabetes, depois de anos na pré diabetes, estava com 96 Kg. Primeiramente fui perdendo peso com dieta e acredito que tb pelos remédios da diabetes, cheguei a 75 Kg, comecei a fazer hidroginástica e caminhadas e corridas intercaladas. Fiz minha primeira prova de 5 Km em novembro do ano passado, metade caminhando, hoje nos meus longos já faço 10 Km de corrida continua, consegui baixar meu tempo nos 5 Km para 29 minutos e meu 10 Km para 65 minutos, que pelo meu histórico e aos 46 anos de idade achava inalcançável. Já reduzi medicação e agora estou fazendo uma série de exames que a cardiologista pediu, para ver se eu posso intensificar mais. Vcs foram de grande ajuda nesse processo todo, pois não sabia nada do assunto, só sabia que precisava sair do sedentarismo. Hoje corro pela saúde física e pela saúde mental. Em abril farei uma prova de 8 Km e estou bem ansioso, ainda é muito novo tudo isso, mas percebo que as provas são grandes aliadas para manutenção do foco e sociabilização. Espero não fazer feio. Em tempo, vc é uma ótima cronista e esperarei ansioso pelos novos textos.

    1. Fabio, que historia! Fico emocionada e muito feliz que vc tomou as rédeas da sua saúde. Muitas pessoas associam saúde à falta de doença. Mas não é apenas isso é acredito que vc já entendeu. A atividade física é realmente muito poderosa. Sempre falo que alta performance não é apenas para os mais rápidos ou mais fortes. É também para aqueles que, como vc, não vão mais se contentar com uma vida mais ou menos. Continue progredindo e se dedicando que o resultado vem. Parabéns por fazer parte do nosso seleto grupo de corredores do PFC! Abraço carinhoso 🫶🏼

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