Por Ana Carol Sommer

Seguimos hoje numa linha investigativa, com o objetivo de propor aqui uma reflexão cada vez mais presente na minha carreira de corredora.  Sim, vamos falar do corpo de corredor. Mas antes que vocês pensem que vamos entrar nos méritos dos biotipos estéticos e de alta performance, um alerta: eu quero falar sobre o corpo que você já tem.

PFC Debate gerando pautas

No episódio do PFC Debate 642 – Nostalgia, Troféus e Medalhas – Duda mencionou sentir saudades daquela época sem redes sociais, em que correr tinha a ver com, simplesmente, correr. Todos os “acessórios” ao redor da prática esportiva, que tanto se valoriza atualmente, não faziam parte das discussões nem do imaginário coletivo de quem corria. Entenda: não significa que esses acessórios não possam realmente otimizar a prática e mesmo estimular o gosto pela corrida. Ainda assim, frequentemente, são pautas que parecem falar mais alto do que a essência do movimento em si.

Já no episódio PFC Debate 638 – Haglund, Pesado e Pista – nossa ouvinte Tainara Piva perguntou para Gigi o que seria um corredor pesado. A própria Gigi havia se auto denominado uma corredora pesada em episódios anteriores. Porém, foi considerando a proporção entre sua altura e a porcentagem de massa muscular que possui. Músculos pesam mais do que gordura, e esse peso “pesa” na corrida, ainda que seja benéfico para um corpo mais apto a realizar as atividades do dia a dia.

Inspirada nessas duas pautas do PFC Debate, juntei os assuntos porque frequentemente somos bombardeados pelas redes sociais com shapes e regras de composição corporal ideais, quilos na balança e dietas que parecem representar o segredo da performance e das conquistas na busca dos sub’s da vida. Existe uma ideia de biotipo padrão a ser perseguida e desmistificada, pois podem causar certas crenças extremamente nocivas ao bem-estar e longevidade no esporte. Quando a realidade da maioria não é a mesma, a verdade é pura e simples:

Você corre com o corpo que você tem HOJE.

A partir deste fato, que pode parecer obvio mas nem sempre é, cabe a você definir que caminhos seguir para trabalhar sua auto-percepção e fazer da sua jornada como corredor ou corredora uma oportunidade de aceitação, satisfação pessoal e autoconhecimento. Vamos falar um pouco sobre autoimagem, autocuidado e autoconfiança na corrida?

Corrida e autoimagem

A autoimagem nada mais é que a forma que um indivíduo se enxerga, tanto por fora quanto por dentro. Você já parou para pensar em como a corrida influencia essa percepção que tem de si mesmo?

Para correr, a gente precisa ter um corpo forte, que dê conta do recado. A sensação de conseguir progredir e melhorar os tempos, construindo uma performance gradativa. sempre foi a minha maior recompensa. Então qualquer ganho estético relacionado com correr era mera consequência. Não era o fim. Quando comecei a correr, não tinha outro objetivo além de me colocar à prova, questão de motivação intrínseca mesmo. Leia aqui como comecei.

A minha autoimagem externa, por outro lado, sempre esteve muito associada aos padrões estéticos das revistas de beleza que fizeram parte da minha infância até a vida adulta. Como muitas mulheres, sempre quis estar “bem na foto”, ter medidas harmônicas (90-60-90…) e tal. O ambiente da academia era que me remetia ao entrar no padrão e não o ambiente da corrida, percebem? Na academia, o espelho está sempre ali, refletindo a minha imagem e a dos outros em tempo real. E isso desde os meus 11 anos, quando comecei a praticar atividades físicas, ou seja, mais de 30 anos de Photoshop na cabeça, como diz meu marido.

Jogos de espelhos

Desde que voltei a praticar musculação mais recentemente, logo no inicio fiquei incomodada com minha imagem refletida no espelho. E antes que isso pudesse causar um efeito negativo, mudei o olhar. Foco na execução do exercício e penso que estou ficando mais forte, mais em forma, mais bonita (sim!), mas sem aquele olhar de julgamento de quem enxerga o corpo fragmentado (a cintura podia estar mais fina, a bunda mais redonda, o abdômen mais sequinho, os braços mais torneados e por aí vai). Quando a gente enxerga o corpo como um todo, é assim que ele evolui. Temos à disposição a máquina mais incrível que podemos ter.

Não podendo fugir de nós mesmos, trabalhar a autoimagem é importante. A primeira etapa é aceitar onde você está antes mesmo de definir para onde deseja ir.

Quando eu corro, não existe espelho, não fico analisando meu corpo físico, não me importo se estou correndo bonito ou não. É um exercício de volta para dentro, dos corpos energético e mental, em que percebo as sensações, a percepção de esforço, as emoções que me atravessam. Muito do que se passa na minha cabeça interfere diretamente naquele instante. Penso na força das minhas pernas, no ritmo do meu coração, na frequência da minha respiração. E aí vou entendendo o que está melhorando e o que ainda precisa de trabalho em relação a minha performance.

Corrida e autocuidado

O autocuidado é cuidar de si mesmo, buscando suprir as necessidades do corpo e da mente, adotando hábitos saudáveis, a exemplo de: alimentação balanceada, das práticas regulares de atividades físicas além da dedicação horas de lazer e de manter uma vida social. Durante a pandemia, não se falou de outra coisa, até porque não teve muita escapatória e todas as opções acima ficaram comprometidas pelo distanciamento social. O confinamento aflorou estilos de vida e comportamentos, pois “sobrou” tempo. Perdi condicionamento. Correr para mim fazia mais sentido quando estava me preparando para uma prova alvo.

Por muitos anos, associei o correr a buscar um resultado. Por outro lado, entendi que a corrida poderia ser uma prática de autocuidado independente de eu estar inscrita numa prova ou não. Ainda que eu aprecie a disciplina que se impõe com um ciclo de treinamento para a maratona, correr por correr, sem GPS apitando zona alvo ou quilometro percorrido pode ser muito libertador também.

Para cuidar de si não precisa de planilha

É diferente sair de casa apenas com a intenção de se movimentar e contemplar. Esvaziar a mente e desligar o painel de controle. Observar o que se passa ao redor, sentir o vento, o calor do sol ou a umidade dos dias de chuva. Caminhar um pouco, se desejar, ir à velocidade que aquele momento pede e não porque está na planilha. Os efeitos benéficos dessa prática mais espontânea não exigem horas de treino. Mas exigem uma revisão de paradigmas, em que novamente precisamos nos voltar para dentro de nós mesmos.

Hoje eu já consigo ligar essa chavinha num treino de rodagem ou de ritmo leve, por exemplo. Antes de começar, observo o que estou a fim de vivenciar naquele dia. Quando rodo nos parques, tenho optado em alguns dias por não ouvir nada que não seja o som ambiente, o ritmo das minhas passadas, as sensações de quente ou frio, essa vibe da natureza mesmo. Ainda que isso pareça discurso esotérico da era de Aquário, acredite: faz um bem danado! Dá leveza ao exercício e um descanso para a cabeça. É uma oportunidade de entrar em sinergia com tudo que nos rodeia.

Corrida e autoestima

A autoestima é a qualidade de quem se valoriza e está contente com o seu modo de ser, se expressar e viver. Nem preciso dizer que correr tem uma influência direta. São vários os argumentos que posso citar: cada minuto a mais correndo com certa facilidade, cada segundo a menos no pace, o quilômetro a mais no longo, aquela volta completa sem andar numa pracinha do bairro, a constância nos treinos com a mentalidade antes feito do que perfeito, o corpo que se transforma e que traduz a satisfação de se sentir bem na própria pele.

Poderia escrever muitos outros exemplos, mas acredito que você já captou a mensagem. Novamente, autoestima é em relação a nós mesmos. É sobre fazer aquele balanço em que olhamos para trás para comparar nosso Dia 1 como corredores e hoje. Na maioria dos casos, dentro de processos saudáveis e metas realistas, os ganhos costumam ser maiores do que as perdas. No final das contas, é preciso respeitar sua individualidade dentro de suas condições e absolutamente NÃO se comparar à jornada alheia para medir a própria evolução.

Você se inspira ou aspira?

Para ter certeza de que a mensagem que pretendo passar é clara, gosto sempre de fazer a distinção entre inspiração e aspiração quando entramos no mérito da comparação. Comparar é da natureza humana, mas tem um jeito mais bacana de usa-la a nosso favor.

No PFC, gostamos de pensar que inspiramos nossos ouvintes a terem uma relação positiva com a prática da corrida. Somos todos corredores normais, que se reúnem para compartilhar ideias e experiencias sobre nossas vivencias pessoais, cada um a sua maneira. Temos bagagens de vida diferentes, valores diferentes, interesses diferentes, ainda que possamos descobrir pontos em comum. Nessas trocas ao vivo, quem sabe você tenha insights e leve para sua jornada algo que faz sentido. Pode ser também que você não concorde e ainda bem. Não pregamos unanimidade. Na corrida, tudo DEPENDE, não é mesmo?

Você parte das nossas referencias para aprender mais sobre quais são as suas. A inspiração serve de gatilho para viradas de chave. E depois?

Depois vem a aspiração, ou seja, o sonho, a ambição, o que você deseja buscar, para onde você quer ir, seja com relação ao seu corpo, sua mentalidade, sua performance, sua relação com a corrida. O erro está em aspirar ser como fulano ou ciclano. Simplesmente não será possível, pois você não pode ter a vida de outra pessoa. Você pode, por outro lado, aspirar ser a melhor versão que pode ser de si mesmo, descobrindo no caminho o que lhe traz essa sensação de contentamento no processo. Percebem a diferença?

Trate o seu corpo como uma casa em que você precisa morar por mais 70 anos

Sei que muitas pessoas se sentem intimidadas seja pelos espaços físicos de uma academia ou pelos espaços virtuais das redes sociais que expõem as realidades editadas de todos que ali estão, incluindo a minha e a sua também. Esse sentimento de não pertencer ou não se adequar muitas vezes nos impede de começar a cuidar mais de nós mesmos.

Vira aquele círculo vicioso dos cenários restritivos para dar o primeiro passo: quando eu (verbo qualquer), eu serei (adjetivo qualquer).

Os espelhos com olhares de julgamento estão por todos os lados. Entretanto, é você quem decide se dá mais ou menos importância aos reflexos alheios. A qualidade do que consumimos para ter um corpo mais equilibrado e saudável não se restringe apenas ao que colocamos nos nossos pratos. Diria que é principalmente o retrato do que pensamos sobre nós mesmos, o como nos enxergamos por dentro e por fora, que mais nos afeta.

Se você pensar no seu corpo como um veículo para realizar TODOS os seus desejos, talvez aprenda a tratá-lo com mais carinho e acolhimento. Afinal, como no subtítulo acima, é a casa em que precisamos morar por alguns bons anos. A manutenção é continua e a corrida pode certamente contribuir para uma vida mais longa e divertida.

Por isso, celebre o corpo que você tem hoje. Se desejar mudá-lo, mude. Mas não deixe de se desafiar por conta de limitações externas e que podem ser apenas temporárias. Correr leve não tem a ver com seu peso em quilos ou body fat. Repito: nosso corpo é uma máquina incrível que nos permite realizar muitos sonhos. Tem algum na gaveta? É hora de tirar do papel! O corpo você já tem. Conte sempre com a nosso equipe do Por Falar em Correr. Afinal, somos excelentes técnicos nas horas vagas!

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