PFC Crônicas 5 – Devaneios de um longão
Por Ana Carol Sommer
Leitura de 6 minutos
Nos finais de semana, meu corpo desperta quando o relógio biológico decide. Ainda assim, o primeiro pensamento que vem à cabeça no instante em que abro os olhos é: hoje é dia de longão.
Fui dormir pensando nisso e a sensação é que começo um novo dia de onde parei meus pensamentos na noite anterior. Antes mesmo de sair da cama, já dou aquela espreguiçada na horizontal, que é para mandar um recado: Corpinho, se prepare que hoje eu vou lhe usar!
Quem é que não dá aquela viajada durante um treino longo? Convido você a embarcar na minha egotrip ecumênica e saber como me preparo para dias assim.
Sem pressa, sem pressão, no ritmo de Buda
Ainda não totalmente convencida, é hora de café da manhã. Para mim, não existe correr em jejum, ainda mais quando se trata dos dias de treino longo. Devidamente alimentada, começo a preparação logística: planejamento do percurso, previsão meteorológica do dia e uniforme de guerra.
Para o percurso, abro o mapmyrun.com. (clique para ver o percurso). O plano é correr 17,5km e gosto de pensar num trajeto que não seja monótono e que me permita saber onde começo e onde termino. A previsão já me indica que teremos chuva, então eu sei até quando posso enrolar. Sim, porque eu enrolo.
Ao mesmo tempo que tenho a clareza do percurso e ritmo alvo do dia, eu também penso: Putz, vou ter de correr até tal lugar e voltar! Mas aí, lembro daquele provérbio budista que diz que toda longa jornada começa com um simples passo e largo mão de viver no futuro que nem existe ainda.
Escolho o look do dia, com um corta-vento impermeável obrigatório, e decido que hoje vou correr com trilha sonora e informação. Coloco também meu colete de hidratação, e pelo menos uma garrafinha de 400ml de água. Substituo a toca pelo boné. É primavera! Daquele jeitão a 10oC, mas é. São quase 11 horas da manhã quando finalmente crio a coragem para colocar o que Buda propôs em prática.
Num percurso de fé, que a fé não costuma faltar
O início é sempre caminhando. Não tenho pressa e meu relógio com GPS parece concordar. Enquanto ele procura a rede, eu vou aquecendo os motores do corpo e da mente. Caminho com a determinação da corredora que vai dar check na planilha – “haja o que hajar”(contém erro intencional de português). O ponto de partida é logo depois do Corpo de Bombeiros, momento em que eu entro na “rede” e estou Ready, segundo o Garmin. Como diz minha treinadora Rosa Naimara: Prepara, foi! Inclusive, ouço a voz dela na minha cabeça nesse momento.
Começo a correr e hoje o vento contra está atrasado. É um falso plano que enfrentarei até chegar na Route de l’Église (Rota da Igreja) pelo Chemin Sainte-Foy (Caminho de Santa Fé), o que considero a parte mais espiritualizada do percurso. Gosto das simbologias, até porque para alcançar a Rota da Igreja, temos uma subida de quase 2k. Aquela subida marota que finge que não é, mas é.
Até lá, tenho outros pontos de referência para ir calculando a minha progressão. Divido o meu treino a cada 3,5km, então o máximo que me permito projetar na distância é esse intervalo. No Garmin, a distância vai decrescendo e acho isso sensacional. Adoto como estratégia mental que considero interessante. E sempre penso que venho acumulando vários treinos bem-sucedidos de 10, 12, 14k, então hoje é mais um tijolinho sendo colocado. Aquela fé inabalável no processo!
Conversando com Pedro Bial
Nos fones de ouvido, acompanho Pedro Bial e seus entrevistados. As conversas me fazem refletir sobre vários assuntos. Gosto de saber sobre a história de pessoas que não necessariamente me interessam, pois sempre identifico algo em comum. Hoje por exemplo, comecei ouvindo sobre um grupo de música gospel nordestino e a forma como eles trazem uma nova leitura do estilo numa pegada mais brasileira. Acho bonita a junção da arte com a fé. Música tem algo de divino, fato.
Paradas são frequentemente obrigatórias nos cruzamentos. Mesmo assim, eu continuo deslumbrada com a educação dos motoristas daqui. A maioria desacelera e me deixa passar, mesmo que o sinal esteja verde para eles. Agradeço sempre com um sorriso e um aceno de cabeça. Parece que eles entendem que é melhor quando não precisamos quebrar o ritmo do treino. Fora que… é domingo! Pressa para quê? Cruzo com uma outra corredora indo na direção oposta. Trocamos um salve amigável com sorriso e seguimos.
Estou quase chegando na Universidade Laval, onde completo meus 5k. Sigo ouvindo Bial, que dessa vez conversa com um cantor famoso, mas que eu nunca tinha ouvido falar: Lô Borges. No entanto, sua parceria mais famosa com Milton Nascimento não me é estranha: Clube da esquina 2. Tocam um trecho dessa música em que ele fala: sonhos não envelhecem. Penso no meu: um sub-4 na maratona. E fico satisfeita por colocar em ação o que precisa ser feito para alcançá-lo.
Solta o som, DJ São Pedro!
Alcanço a Rota da Igreja e viro à esquerda, chego quase na metade e isso significa que estou retornando. Nesse momento, decido que chega de informação e cultura. Passo à minha playlist do Spotify. Cai bem, pois após a ascensão espiritualizada do Caminho de Santa-Fé, temos um belo trecho em descida. Com minha House Music nos ouvidos, deixo as pernas me levarem até o Chemin Saint-Louis (Caminho São Luis).
Não demora muito e viro à direita na Côte Ross, que culmina com uma ladeira até o nível do Rio São Lourenço. Realmente, um percurso abençoado com tantos santos. E nessa hora toca Shiny Happy People do R.E.M. Combina, pois quem é que não fica radiante com a trégua de uma descida longa?
Mas… lembram da previsão meteorológica? Pois bem, a alegria de chegar no trecho mais plano, com vista para o rio, é quebrada pela chuva que decide que agora é a hora. São Pedro achou por bem fazer a participação especial que estava prevista. E aliás, o vento contra veio junto, justificando o atraso na ida, ele aparece na volta. Terei os últimos 7,5k com emoção. E Mr Jones do Counting Crows toca e eu entendo que essa parte é para mim:
I wanna be a lion (Eu quero ser um leão) Yeah, everybody wanna pass as cats (Sim, todos querem se passer por gatos) We all wanna be big, big stars (Nós todos queremos ser grandes estelas) Yeah, but we got different reasons for that (Sim, mas temos diferentes razões para isso)
Pois bem, enfrentando chuva e vento contra, a live com Dean Karnazes no Por Falar em Correr aparece no meu pensamento:
It doesn’t matter if you go fast or slow, what matter is that you go (não importa se você vai rápido ou devagar, o que importa é que você vá).
Como estamos em dia de treino é treino e não de jogo é jogo, eu resolvo que não vou oferecer resistência e nem correr no limite da honra. Rosa Naimara imaginária fala novamente nos meus ouvidinhos: Raça equipe! Nisso, Jamiroquai toca na sequência e realmente, a sensação é que estou numa Virtual Insanity, mas não. É a realidade. Tanto é que cruzo novamente com a mesma corredora lá do inicio. Nessa hora trocamos olhares de cumplicidade na dificuldade e admiração mútua. Duas brabas, como dizem…
Correndo no presente do indicativo
O que eu tenho é o agora, então aceito como ele se apresenta e continuo no plano, no sentido figurado e literal. Cruzo com pouquíssimas pessoas. Alguns corredores me saúdam, outros passam reto na própria bolha. Nessa hora, um momento de atenção plena. Até que faltando uns 2,5k para acabar, a chuva passa. Escolho a musica Flower de Moby para concluir. A ideia é entrar numa espécie de cadência repetitiva que é para fechar a distância. Acho que ajuda a manter o foco.
Termino o treino em frente de um SPA nórdico. Seria o final perfeito, mas não será hoje que me entregarei ao quente-frio seguido de descanso vestindo um roupão felpudo branco. Isso não estava no plano. O que estava?
Uma escadaria de 398 degraus. Isso mesmo! Preferi descer até o rio para mudar o trajeto de sempre, então era claro que eu teria de subir até a parte alta, onde eu moro. Mas a essa “altura” do campeonato, o treino estava entregue e eu estava me sentindo feliz por tê-lo cumprido, apesar dos imprevistos. Pode parecer besteira, mas essas pequenas coisas que a gente planeja para aumentar as chances de sucesso fazem a diferença, principalmente quando improvisar é preciso. Nada é aleatório e querendo ou não, é difícil fugir dos pensamentos que invadem a nossa cabeça.
Sábio São Bernardinho
Durante um longão, crio a minha própria narrativa para dar ainda mais sentido ao que me propus a fazer e reforçar o que desejo realizar. Nesse dia, ouvir podcast e musicas ajudou. Tem outros dias em que vou no seco mesmo, lidando com os monstrinhos interiores. Às vezes dá boa e às vezes dá ruim. Não vou dizer que é um loteria, porque temos controle sobre muitas coisas quando entendemos que é sobre a gente mesmo.
No final das contas, como sempre digo, confiança se conquista no caminho. E para deixar mais uma frase motivacional que carrego no meu bloco de notas mental, vou de Bernardinho: A vontade de se preparar tem de ser maior do que a vontade de vencer. E aí? Concordam? Compartilhem comigo como vocês lidam com os treinos longos.
Ps.: A quem interessar possa, eu moro na Rua São João.
Bons treinos, corredores! Obrigada pela leitura!
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Mais uma crônica sensacional!!! Meu ritual para os treinos longos (que eu faço normalmente aos sábados) é um pouco diferente.
Eu corro em jejum, porque se não a comida fica sambando, e já me acostumei assim desde meus começos na corrida. Também corro sem músicas porque gosto de curtir a sensação do “longo” e aproveitar para lidar com meus pensamentos ou pensar em alguma coisa específica.
Assim como você, eu planejo minha rota com antecedência e gosto de saber por onde eu vou passar para não me perder (ainda estou conhecendo o novo local aonde moro).
Os longos eu utilizo como terapia e para me livrar do estresse da semana.
Seguimos!!!
Bons treinos e boas corridas!!
Olá William! Realmente, longão é treino para decantar e cada um encontra a sua maneira. Existe o previsível e o imprevisível. O fato é que sempre descobrimos coisas sobre ós mesmos e isso faz toda a diferença na jornada.Seguimos! Abraço carinhoso.
Eu estou adorando os treinos longos, dúvidas no início, mas quando engrena eu curto muito, irei lembrar do provérbio budista que vc acaba de compartilhar conosco. A satisfação pelo treino concluído é fantástica, ainda mas para mim que de tempos em tempos vou atingindo um pouquinho mas de distância, muitas vezes sou desses corredores que vivem na própria bolha, mas o tempo está fazendo eu ir me soltando um pouco, já comprimento alguns corredores e desejo um bom treino. Encontro várias pessoas legais que incentivam. Também, me alimento antes do treino, eu não ouço músicas durante o percurso. Concordo com a frase de São Bernardinho. Eu estou na fase de descobertas e por enquanto os treinos longos estão sendo ótimos para isso.
Ola Fabio! Obrigada pela leitura e por compartilhar a sua história com os treinos longos. Realmente, é um treino que nos permite descobrir mais sobre nós mesmos e vivenciar diferentes emoções. O grande lance é curtir essa coisa meio esquisita que acontece antes, durante e depois. A minha treinadora costuma dizer que os treinos mais difíceis são os que mais nos preparam para o dia D. Continue assim que vc vai certamente longe! Abraço carinhoso!