PFC Crônicas 9 – A maratona e a montanha russa
Por Ana Carol Sommer
Montanhas russas são radicais. Você pode até olhar de fora e tentar prever a experiencia pelo desenho da estrutura de aço: uma pista que começa no plano, sobe devagar, até chegar no ponto mais alto. Parada dramática: não tem como voltar atrás. Sensação de quase queda livre. É uma pressão no corpo em geral que nem se sabe ao certo de onde ela vem. Você se entrega mesmo assim. Já chegou até aqui.
Dá vontade de gritar de entusiasmo e de chorar de medo. Quando menos se espera, a velocidade desacelera e estamos de volta ao ponto de partida. Encará-las dá status de bravura a meros mortais, com direito a fotos durante que é para provar que foi, viu e venceu. Para alguns, uma voltinha é suficiente para a matar a curiosidade. Para outros, quanto mais vezes, melhor. A sensação nunca é igual.
A crônica da vez é sobre a montanha russa de emoções que o ciclo de treinamento para uma maratona oferece. É uma diversão questionável por muitos, onde dor e prazer se juntam por opção. E tudo por que um dia você pensou:
Por que não correr 42.195km (mais uma vez)?
Apertando os cintos!
Nessa metáfora, é como se eu estivesse naquelas longas filas de espera do parque de diversão quando de repente é possível cortar a vez. A sorte e Chicago sorriram para mim, gatilho de novo ciclo de preparação. Aperte o cinto, Ana Carol! A empolgação disse presente, como um pontapé necessário que nos impulsiona a transformar o sonho em realidade.
Era hora de fazer a checklist de segurança para construir uma base sólida. Primeiro desafio: que venham os sprints de 400m! Tratamento de choque, como um susto no coração de curta duração anunciando fortes emoções. Em algum momento, as circunstâncias da vida fora do Strava iriam me impor limitações, mas enquanto elas não vinham, era simples: trabalhar a constância e a disciplina. Lá vamos nós!
Rumo à primeira elevação
O caminho até o primeiro ápice-aperitivo do que vem por aí é relativamente tranquilo. Até que os longos começam a dar o tom. No início da minha preparação em 2023, longos eram os meus maiores desafios por duas razões: estava reconstruindo a minha resistência; precisei fazer um retorno às ruas e desapegar da minha esteira de estimação, principal aliada durante o inverno rigoroso de Québec.
Depois do último treino de 17,5km antes da primeira meia-maratona do ano, escrevi o PFC Crônicas 5 – Devaneios de um longão. Foi um treino fluido, apesar do vento contra e da chuva, quando a temperatura ainda estava levemente acima de 0oC. Estava confiante no progresso até então, mas hesitante quanto à possibilidade de completar abaixo de 2 horas. Mais de dois anos haviam se passado desde a minha última maratona, que foi em Nova York. Senti aquele frio na barriga que precede a primeira ladeira abaixo…
Seguida da primeira queda
Primeira prova-alvo do retorno: a meia-maratona de Lévis no início de maio. Resultado: Sim, falhei miseravelmente.
Documentei o fiasco e o plano de ação no PFC Crônicas 6 – Quebrando com dignidade: na prática a teoria é outra. Sobre o que não controlo, só posso colocar na conta da previsão do tempo. Foi o primeiro domingo acima de 20oC desde que entramos na primavera. De resto, foi tudo ignorância desta cronista que vos escreve. Faltou perna, hidratação, suplementação e, principalmente, cabeça.
Com consciência, acolhi o mal resultado e ajustei o plano para reverter a situação. Acho importante que coisas assim aconteçam o quanto antes num ciclo. A primeira queda na minha montanha russa escancarou a minha realidade. Apesar dos meus quase 20 anos de quilômetros rodados, é preciso ter a humildade para reconhecer que o passado ficou para trás e reconstruir a confiança. Segui.
Pegando novo impulso
No PFC Crônicas 7 – Anunciação… vem aí mais uma Major Marathon! contei como foi a fase de implementação das lições aprendidas pós-fiasco e pré-ciclo em busca da consagração em Chicago. Foi a fase de incluir fortalecimento muscular, estratégia de suplementação para treino e alimentação, tentando errar o menos possível na constância dos treinos. Participei de algumas provas recreativas, mas que me ajudaram a continuar construindo minha confiança. A meta era Sub-4!
A partir de junho, os treinos de ritmo assumiram o posto do treino mais desafiador da semana. Começamos com as séries de 2km em ritmo de prova e a ideia era chegar até séries de 5km. Quando Rosa Naimara – expert em tapinhas amorosos com luvas de pelica – percebeu que eu estava dando uns perdidos no ritmo, ela mandou um recado bem eficaz: programou dois e não apenas um treino de ritmo na semana seguinte. Entendendo a mensagem, obedeci. Para isso que serve treinadora: para nos colocar no devido lugar!
A gente pode estar treinando para a maratona, mas a vida continua e o mundo não pára para que possamos dormir bem, comer legal, fortalecer, manter a sanidade mental em dia. Em agosto eu inaugurei uma nova cor na métrica de assiduidade de treinos: a planilha laranja. Sim, um misto de vermelho e amarelo com menos verde do que gostaríamos. Resumindo: amarelei mesmo! Digamos que há dois meses do objetivo, não era o momento de desandar, mas eu desandei.
Uma sequência de loops bem desconfortáveis
Na vida pessoal, meu cachorro Yorkshire Tyko começou a ter sintomas de demência canina. Começou a acordar no meio da noite, latir sem razão, demonstrar agitação e um pouco de irritabilidade. Passei a ter noites de sono interrompido e, em alguns momentos, a tristeza e muita preocupação tomaram conta quando deixei a incerteza do amanhã se instalar nos meus pensamentos. Entender que os cachorros também envelhecem e que a gente se sente impotente diante da situação foi emocionalmente difícil para mim.
Na vida profissional, aceitei o desafio de mudar de equipe. Ofereceram a proposta com base nas minhas competências e performance, um belo reconhecimento do meu potencial. Considerando minhas ambições de carreira, a oportunidade me posicionaria muito bem para um eventual posto de direção. Aceitei porque acredito no que faço. Só que os dias de trabalho ficaram mais intensos e com isso nada de me hidratar ou alimentar corretamente.
Treinei, mas não estava conseguindo dar conta de tudo e precisei de um intervalo nas emoções da montanha russa. Foi tipo um problema técnico que pausou a aventura até a EUquipe de manutenção resolver o problema. Aliás, no PFC Crônicas 2 – Nos bastidores da endorfina, todo corredor é um malabarista! eu já tinha cantado a bola. Os pratinhos estavam caindo… como previsto. Restava aceitar os fatos e recalcular a rota, de novo!
Assistência técnica Santo Agostinho LTDA
A minha pausa estratégica aconteceu no final de agosto e o meu destino foi um monastério. Mas, calma! Não me converti ao mundo do imaterial. Aqui em Québec temos um monastério que foi transformado em hotel. É um lugar em que as pessoas vão para se reencontrar, recarregar as energias, dar uma pausa na loucura que pode ser a vida de tempos em tempos. E eles trabalham com o legado deixado pelas irmãs devotas de Santo Agostinho, que chegaram pour aqui nos anos 1600 com a missão de curar as almas e os corpos.
Dos três dias em que fiquei lá, apenas no primeiro saí para treinar na academia, pois ainda não estava totalmente imersa na experiencia. Alias, no monastério não havia um espaço fitness, quem dirá uma esteira. Mas bastou entrar na nova rotina para me desligar das obrigações externas. Passei a me dedicar de corpo e alma a mim mesma, sem culpa por ficar devendo 26km de volume na poupança de Chicago. Precisava daquele tempo, comendo em silencio, sem celular, fazendo marchas contemplativas, práticas de yôga e consultas sobre saúde global e autoconhecimento.
Saber sobre a história de fibra, fé e dedicação das irmãs só me deu mais força para seguir na minha “peregrinação” de maratonista por vocação. Por escolha, elas tiveram a resistência e a resiliência de trabalhar pelo menos 12 horas por dia durante 365 dias durante 3 séculos, com uma série de restrições pessoais, nem sempre em condições favoráveis. Ainda assim, conseguiram encontrar equilíbrio em momentos de descanso, de presença consciente, de amizade e com alegria para realizar a missão. Se elas deram conta, então eu também seria capaz de continuar. Só precisava desse acolhimento para entender que o melhor estava por vir.
Sinal verde para continuar
Dali em diante eu vivi para chegar no treino mais temido: o mais longo, que no meu caso foi de 30km. Se vocês entrarem no meu Strava, verão que eu comecei a dar nomes divertidos a cada um dos meus treinos. Com o calor que faz nessa época, tive a “oportunidade” de rodar 24km na esteira. Nesse dia, a alegria foi abrir o Netflix e ter a nova temporada de Young Sheldon disponível. Montei meu setup com água, géis e Gatorade e abracei o modo hamster.
O parque linear da Rivière Saint-Charles era o destino obrigatório dos domingos. Um percurso plano, contínuo, cercada de natureza e abrigada do sol ou da chuva em alguns trechos, graças às trilhas sob as árvores. Criei até um mini ritual musical, em que saía de casa ouvindo uma playlist especial para entrar no estado mental do tudo é possível. Aquele lugar se tornou meu santuário, de certa forma uma extensão de quem estava me tornando, ao ponto de eu imaginar que as moitas e arbustos eram meus torcedores invisíveis. Uma espécie de comunhão com a minha natureza.
E assim fui subindo a escadinha do volume a cada final de semana. Até chegar o dia do Treino Lua de Cristal, ou seja, os 30km.
O loop mais longo e radical
Sendo uma pessoa nascida em 1979, Xuxa Meneguel teve uma grande importância na consolidação do mantra: querer, poder e conseguir. Esse ano, essa foi a música tema dos meus treinos longos para Chicago e sem vergonha alguma eu lhes digo: me emocionei cada vez que ouvi Lua de Cristal. Sei lá, me conecta com algo muito especial e verdadeiro que talvez apenas a geração X de seguidores fiéis da Rainha dos Baixinhos vai entender. Interessante…. geração X…
Esses dias compartilhei essa frase de um perfil de corrida no Instagram que se chama @umsonhodecorrida:
A maratona não é para quem é veloz. É para quem tem coragem de treinar.
Quando você chega no último longo, você entende o sentido. Porque treinar mexe demais com nosso emocional. Você alcança o pico do volume, do cansaço e já não tem mais a ver com força de vontade. É outra coisa que nos move. Você nunca esteve tão em forma, mas ao mesmo tempo se questiona se fez o suficiente. Deve ser o medo natural do desconhecido. Ao menos acredito que todos que respeitam a distância devem ter alguns minutos de incertezas.
No meu último longo eu fiz a tal da catarse. Vivi tudo quanto foi emoção e sentimento: do entusiasmo à solidão, do otimismo à hesitação, da auto-critica à auto-compaixão. Mas rodei até o final. Lembrei muito do que minha Coach Priscila Serapio havia dito recentemente: não importa a velocidade, o que importa é a direção. E nos pés da escadaria que me levaria de volta para casa, eu me sentei e chorei. Porque dei tudo que eu tinha e por mais que ainda me restassem duas semanas antes do grande dia, ali eu tive a confirmação de que o “trabalho” havia sido feito. A história daquele ciclo estava escrita e eu era só gratidão por mais uma vez ter tido coragem.
Voltando à calmaria
Depois de tantos altos e baixos, as semanas de polimento são um presente de final de ciclo. Para mim, é a fase de celebração, só alegria mesmo. Ver treinos de menos de 20km na planilha, é uma benção. Você percebe que a corrida sai fácil e isso ajuda a recobrar a confiança. No meu caso, tive 16k uma semana antes de Chicago e que coincidiu com a maratona de Québec. Depois de tantos treinos solitários, finalmente estaria em boa companhia.
Estava inscrita para os 10k, então fui correndo até a largada para completar os 16. Mas vou parar por aqui, porque algo muito importante aconteceu nesse dia e quero contar junto com o meu race report de Chicago. Se ficou curioso ou curiosa, aguarde a próxima edição do PFC Crônicas. Prometo que não vou demorar.
Conclusão
Comecei falando de montanha russa, mas se eu trocar por maratona, dá no mesmo. Ainda que com pequenos ajustes.
Maratonas são radicais. Você pode até olhar de fora e tentar prever a experiencia pela altimetria do percurso: um trajeto que começa no plano, sobe devagar, até chegar no ponto mais alto. Parada dramática: muro dos 30km, não tem como voltar atrás. Sensação de quase queda livre. É uma pressão no corpo em geral que nem se sabe ao certo de onde ela vem. Você se entrega mesmo assim. Já chegou até aqui.
Dá vontade de gritar de entusiasmo e de chorar de medo. Quando menos se espera, a velocidade desacelera porque você cruzou a linha de chegada. Encará-las dá status de bravura a meros mortais, com direito a fotos do Foco Radical durante que é para provar que foi, viu e venceu. Para alguns, experimentar uma maratona é suficiente para a matar a curiosidade. Para outros, quanto mais vezes, melhor. A sensação nunca é igual.
Então só me responda uma coisa: a maratona é ou não é como uma montanha russa?
Obrigada pela leitura!
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Genial a crônica, Ana! Aguardando ansiosa pela parte 2 da “Maratona Russa”. 👏🏻👏🏻
Oi Camila! Que bom que gostou! E eu que achava que não era uma pessoa assim tão radical, revi meus conceitos. Em breve publico a sequência! Abraço carinhoso!
Adorei! Vc escreve bem! A maratona é montanha russa em tudo ( nos treinos e durante a prova também).Parabéns pelo texto!
No aguardo do próximo!
Ps- na verdade, preciso ler os anteriores! Kkkk
Fala Maratonista!!! Obrigada pela leitura. E sim, aproveite que nessa retrospectiva da preparação para Chicago já deixei os links para outras crônicas sensacionais. Em breve sai o próximo. Abraço carinhoso!
A melhor parte foi essa da treinadora. “Programou dois e não apenas um treino de ritmo na semana seguinte”. 😂
Quero saber a parte 2. Já sei como foi por áudio, agora falta saber por escrito também.
Pois é, Enio Augusto! Quando eu decidi passar batido pelos treinos de ritmo, a conta chegou! 😂😂😂 Tough love que fala, né? Na Maxxyma, temos! E mesmo já tendo falado sobre Chicago, trarei elementos inéditos no texto. 🤩
Ah!! Como eu estava com saudades das crônicas da Ana Carol!!
Uma leitura que me fez refletir, será que estou preparado para encarar os 42.195 m?
Pelo menos parece que já passei o processo de adaptação no novo pais e da nova rotina e teria como “encaixar” esse “pratinho” chamado treinamento para maratona.
Sem me gabar, a consistência e disciplina para treinar eu já tenho, visto que não deixei de treinar mas deixei de “competir”, quer dizer deixei de participar de provas e também deixei de lado a “performance”, (claro se é que pode ser chamado de “performance” meu querido ritmo de 5’30″5’40” mas desapeguei de correr mais rápido, embora os treinos de intervalos e de ritmo façam parte da rotina mas pelo desafio que pela “performance”.
Por outro lado, nesse período de adaptação a cabeça e o mental deram uma desarranjada e “quebrei” em vários treinos e na única prova que tentei, não foi somente o calor, foi a cabeça pela ansiedade de dar o meu melhor no novo desafio. No entanto, agora que as temperaturas estão mais amenas e a rotina mais “ajeitada” tenho me “pegado” pensando em quem sabe “enfrentar” uma maratona e também se teria coragem para enfrentar os treinos mais longos!
Como sou ouvinte e participante consistente das “lives” de quinta segui a “dica” do Ênio (embora ele não achou graça 🙂 ) e me inscrevi na “loteria” para a maratona de Chicago (peguei logo de cara todos os opcionais) e também saberei o dia 7/12 se fui um dos “abençoados” do sorteio!! Se conseguir será o sinal de “universo” me dizendo que estou pronto, se não conseguir farei acontecer e procurarei alguma outra maratona no segundo semestre de 2024, porque eu sinto que está na “hora” de encarar esse desafio… !! Seguimos experimentando essas “montanhas russas” que a vida nos coloca na frente e decidir se será só uma vez ou se o faremos mais vezes!!
Bons treinos, boas corridas e boas “montanhas russas” para todos!!!
William, meu leitor mais fiel e escorpiano! O que quero mesmo é isso: gerar insights, reflexões, autoconhecimento por meio da corrida. Vejo que vc está evoluindo e se entendendo aos poucos nas várias facetas do corredor. Já que a sorte foi lançada, vamos aguardar a decisão do universo. Continuo torcendo por vc! Abraço carinhoso!
Muito bom. Fiquei pensando que essa montanha russa vale pra tanta coisa…e me vi um pouco assim também nos desafios de provas mais curtas.
Aguardando a sequência… beijos!
Duda, é verdade! A montanha russa das emoções sempre dá o ar da graça em diferentes situações da vida. Como nosso baluarte e recordista oficial, acho que vale também para a suas provas de pista. Deve ser sinistro demais! Não sei se tenho essa coragem que vc tem! Obrigada pelo comentário!
Muito agradecido por poder aprender com suas experiências, eu vou para minha primeira meia maratona em fevereiro, acho que vou passar por essa “montanha russa” que vc já passou tantas vezes só quando me aposentar se Deus assim me permitir. Parabéns pela maratona e parabéns pela crônica, sigo sempre voltando aqui, pois adoro o seus textos.
Olá Fabio! Ser corredor é quase sinônimo de ser um apreciador de montanhas russas. Aqui eu foquei mais na maratona, mas toda distância tem esse mesmo potencial de nos desafiar a superar medos, dificuldades, dores físicas e emocionais. Mas eu prometo que cumprindo o processo sem loucuras, a recompensa vem. Continue treinando! Desejo uma primeira meia-maratona repleta de descobertas e conquistas. Abraço carinhoso! Obrigada pela leitura!