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PFC Crônicas 2 – Nos bastidores da endorfina, todo corredor é um malabarista!

Fonte : Mysticsartdesign via Pixabay

Por Ana Carol Sommer

Leitura de 5 minutos

Respeitável público

Quando eu era menor ainda, fui ao circo algumas vezes. Em minha inocência infantil, acreditava que tudo ali acontecia por magia e que provavelmente aqueles artistas nasceram com talento.

Os malabaristas sempre foram, para mim, uma atração à parte. São poucos minutos de atenção de uma plateia quase sem ar, numa coreografia aérea de objetos e posições desconfortáveis que é para demonstrar a destreza e ousadia. No final, tem sempre um acréscimo de dificuldade para confirmar que o artista é bom mesmo

Fato é que a caminhada até os holofotes do picadeiro é longa e somente para quem está disposto a encarar as dores que acompanham a jornada. Paciência e persistência são certamente ingredientes da receita, mas aquela sensação de superação no momento certo é o que deve fazer os riscos valerem a pena.

Quem é que não gosta de um aplauso, nem que seja em forma de like, não é mesmo?

Esse contexto circense me fez pensar na nossa rotina de corredores. Guardadas as devidas proporções, correr exige um certo malabarismo quando levado a sério. A recompensa em forma de endorfina só é possível com ajustes importantes na nossa vida comum de corredores amadores. A corrida vem para agregar, mas ela pode se colocar em conflito com escolhas ou hábitos antigos, nem sempre muito fáceis de mudar.

Falemos de treinos, de alimentação e de fortalecimento muscular. O tripé de todo corredor malabarista.

O show das desculpas vai começar

A coisa mais fácil para mim sempre foi começar pela planilha. O plano de ação está todo ali. É preto no branco, ou melhor, verde para todos os lados que queremos! Só que a planilha não se cumpre por magia. Entre a notificação do treino do dia e o verdinho tão desejado do status concluído como planejado, muita água (na forma de desculpas) vai rolar. Estou aqui sendo bem sincera, porque por mais incrível que possa me sentir no pós-treino, admito que o pré é bem desafiador.

Exemplo: Não sou uma adepta do clube das 5 da manhã, nem me esforço para ser porque não me identifico com esse hábito. Até me levanto cedo, mas porque gosto de começar o dia devagar, sair com meu cachorro, tomar meu café, ouvir podcasts, ver meus Tik Toks (me julguem). Levantar e já sair correr parece que me apressa as coisas e a minha rotina de gestora já é uma loucura. Para que tanta pressa, Brasil?

Por isso, faço os meus treinos depois do trabalho. O que também pode ser uma cilada, Bino. Num trabalho extremamente mental como o meu, a sensação que tenho é que no final do dia minha energia sempre se esgota. Junte-se a isso o inverno polar daqui de Québec, com dias mais curtos, sol que dá menos as caras, e a esteira como aliada se não quiser sucumbir à hibernação durante cerca de 5 meses por ano. Percebem como sempre temos mais razões para não correr do que o contrário?

Quebrar a inércia é preciso! E aí, melhor não pensar muito… só ir! É prazer ou necessidade? Um misto dos dois.

Hoje tem marmelada? No pré ou no pós-treino, tem sim senhor!

Falando da alimentação do corredor, está aí um prato importante de se equilibrar e às vezes difícil de engolir. Contém trocadilho!

Grande parte dos corredores já bateu ponto no consultório de um nutricionista buscando o correr mais leve e mais rápido. E é sempre aquele momento de horror, como numa sala de espelhos em que a realidade se distorce. Subir na balança, se fazer apertar as pregas desgraçadas para calcular o BF (Body fat ou porcentagem de gordura) e abrir o diário alimentar para perceber que a vida toda você comeu errado.

Além da planilha verde, a gente tem de bater os macros (carboidratos, proteínas e gorduras). Planilha e macros têm a ver com a criação do tal déficit calórico. E de repente a vida vira uma sequência de refeições de 3 em 3 horas que visam nutrir um corpo performante, mas que nem sempre nutre a alma, já que esta parece precisar de mais sustança prazeirosa.

Com isso tudo, quero dizer que o negócio é ser razoável e aprender a se ouvir. Procuro comer bem, sem exageros e não por impulso emocional. Presto atenção aos alimentos que favorecem meu desempenho ou não; ao que vale a pena ingerir durante um treino longo ou no dia anterior a uma maratona. Porém, não deixo de comer com amigos por causa da corrida.

A leveza que procuro não é na balança, é na minha consciência. Se de repente tudo começa a virar sacrifício, as coisas perdem o sentido. Muitas coisas legais na vida acontecem ao redor de uma mesa. Não podemos esquecer da alegria de um jantar de massas pré maratona, ou daquele rodízio numa churrascaria no pós, por exemplo.

Domadores de músculos na força do ódio

E claro que o corredor malabarista tem o “pratão” do fortalecimento muscular para manter no ar. Este, na contramão da Bela Gil, não tem como substituir. Um erro muito comum dos corredores iniciantes é subestimar a importância desse complemento essencial à corrida.

No início, nosso condicionamento cardiopulmonar progride mais rápido que do muscular, o que pode dar uma falsa sensação de que a “genética” é boa. Às vezes pode até ser, mas por via das dúvidas, é sempre bom trabalhar as fundações. Só precisa entender que até aqui o treino precisa ser mais direcionado para a corrida, pois caso contrário, os objetivos podem entrar em conflito. Rumo ao sinistro não baixa pace.

Seja na forma de musculação ou de treinamento funcional, aproveito esses momentos para me concentrar no movimento que realizo, visualizar os músculos que estão sendo trabalhados e executar da forma mais consciente possível. Durante treinos assim, não consigo pensar em outra coisa. Exige concentração, não tem jeito. Acredito que dá uma desacelerada nos meus pensamentos, coisa que dificilmente acontece quando estou correndo.

Fecham-se as cortinas, mas o show tem de continuar

Percebem como existe um laço entre a corrida e o malabarismo? O equilíbrio entre tudo que precisamos considerar para melhorarmos como corredores não é necessariamente proporcional o tempo todo. Tudo depende do momento em que estamos dentro de um ciclo.

Pode ser o período de base, a fase de maior volume ou intensidade, talvez o trabalho nos imponha escolher entre correr e fortalecer, uma lesão talvez nos faça mudar temporariamente de modalidade e trabalhar mais a alimentação. Quando a realidade muda, a gente muda o plano.

Grande parte da minha satisfação está em seguir o plano, mas não a qualquer custo. Malabares desenvolvem reflexos rápidos e ajustam seus movimentos para manter diferentes objetos no ar. Começam com dois e vão acrescentando outros aos poucos. Improvisar sempre, mas fazer de qualquer jeito não dá! Consistência e disciplina, lembram? Não precisa ser perfeito. Basta realizar na condição que conseguimos criar.

Muitas vezes, o mais difícil é escolher com sabedoria o prato que deixaremos cair deliberadamente e ficar em paz com isso.

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No episódio 603 do PFC Debate, um de nossos ouvintes nos lançou uma questão que inspirou esta crônica. Participe ao vivo com a gente toda 5ª feira às 19 horas de Brasília pelo YouTube e quem sabe você não me inspira a escrever sobre mais histórias de corrida. Os episódios do PFC Debate se transformam em podcast disponível no Spotify. Não esqueça que você pode também se tornar membro da nossa comunidade de apoiadores por apenas R$1,99 por mês!

3 thoughts on “PFC Crônicas 2 – Nos bastidores da endorfina, todo corredor é um malabarista!

  1. Olha que crônica sensacional! Tem tudo a ver sim, na vida somos todos malabaristas tentando não derrubar os pratos ou pelo menos ser ciente que um prato “menos prioritário” no momento pode cair, mas mais para frente pode fazer falta, e temos que levantar e equilibrar de novo esse “coitado prato quebrado (ou somente levantá-lo se o prato for de plástico) e colocá-lo novavente para o “jogo” e assim vamos na vida.
    Fazemos malabares e escolhas o tempo todo, tentando não ficar muito desapontados o frustrados com o resultado do prato caído.
    Seguimos então!!!

    1. Isso mesmo, William! Quando fui escrever, tinha pensado no equilibrista, sabe? Alguém talvez numa corda bamba. Mas nesse caso, se ele cai, tudo vai por água abaixo. Um malabarista me pareceu mais próximo da nossa realidade, na vida em geral. As prioridades estão sempre mudando. Obrigada pela leitura e parceria de sempre!
      Abraço carinhoso

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