PFC Crônicas 6 – Quebrando com dignidade: na prática a teoria é outra

Por Ana Carol Sommer

Leitura de 6 minutos

Após um longo inverno aqui no hemisfério norte, está aberta a temporada das provas de verdade. Pois bem, hoje é dia de contar como foi que, logo no retorno às meias maratonas, eu (não) coloquei em prática toda aquela sabedoria acumulada ao longo de tantos anos de corrida. Trabalhamos com verdade, então vamos à análise nua e crua dos fatos e às lições aprendidas. Afinal, sempre dá para melhorar.

Lembrando que quebrar é para todos e só não quebra quem não correu.

Partiu, 21k?

Desde 2016, já virou tradição: a minha temporada oficial de corrida começa em Lévis, uma cidade que fica do outro lado do rio São Lourenço, a uns 45 minutos de carro da minha casa no centro de Québec. A prova principal é a meia-maratona, mas também é possível completar 10k ou 5k. Para as crianças, eles oferecem até uma corrida de 2km, ou seja, é para todas as idades e gostos.

Esse ano me inscrevi para a meia-maratona e depois de um ciclo que considero quase perfeito, estava me sentindo pronta para o desafio. Quando falo de um ciclo quase perfeito, leia-se: completei cerca de 90% dos treinos de corrida previstos.  Considerando que realizo a minha base e o treinamento específico ainda no inverno polar, foi sucesso. Desde que consegui a vaga para a maratona de Chicago decidi que a constância e a disciplina são as palavras do ano.

Disclaimer: Atenção, nada de fortalecimento e nutrição envolvidos. E mesmo assim eu considerando o ciclo quase perfeito. Seguimos.

Esse ano, a largada foi no estacionamento de um shopping, então o espaço é vasto e a estrutura nos permitia esperar num local fechado com banheiros de verdade. No dia anterior, além de separar a roupa que usaria e tudo mais, também decidi que não correria com música. E essa foi a grande preparação. Pausa dramática antes de lhes contar a história dessa meia-maratona com toques de inocência juvenil.

Que comecem os jogos 2023

Pois bem, leitor e leitora que me acompanham. Começa agora uma série de momentos joselitos que, espero, servirão de humildes lições aprendidas em vossas aventuras na corrida. Acho importante compartilhar com vocês porque por mais quilometragem que a gente acumule ao longo de anos, às vezes entramos numa espécie de “corredor automático” que pode comprometer as mais belas intenções, resultados e notificações de kudos no Strava.

Erro #1 – Já conheço o trajeto, tá tudo dominado!

Será mesmo, Ana Carolina? Pois bem, a última vez que corri a meia-maratona de Lévis foi em 2019. Foi o ano de preparação para a maratona de Nova York e completei em 1h58. Com preparação digna, sempre completei as meias abaixo de 2 horas. A previsão para esse ano era em torno disso também, mas…

A largada mudou de lugar e isso fez com que logo no início, a gente começasse em subida. Mais precisamente, 2,5k subindo, Brasil! Mas eu descobri na hora… por que, né? Não tem necessidade de estudar o percurso e altimetria com antecedência, não é mesmo? Contém sarcasmo. SEMPRE analise o percurso antes, SEMPRE.

Erro #2 – Bora começar forte que hoje eu tô me sentindo bem!

Então, atire a primeira pedra quem nunca largou mais forte do que devia, levado pela empolgação do pelotão e acreditando que é hoje que eu “se” consagro? Uma das coisas mais difíceis (para os seres mortais que correm, evoluídos ignorem essa afirmação) é controlar o ritmo no início diante dessa energia tão contagiante que é largar, ainda mais a primeira prova depois de 7 meses da última medalha?

Fechei o primeiro km 30 segundos mais rápido do que deveria!!! No segundo Km, ainda para o alto e avante, o ritmo caiu um pouco, mas depois foram praticamente 5km descendo (ainda que com uns altos e baixos) e fui temporariamente feliz bem abaixo do pace programado. Do km 8 ao 12 eu finalmente entrei no ritmo alvo e aí… a conta veio!

Erro #3 – Suplementar pra quê? Agua é vida!

Quem treina no inverno sabe. A gente não sente a mesma sede como no verão. Corri muito treinos longos em zona aeróbia, de boa, com temperaturas abaixo ou levemente acima de 0oC. Nessas condições, a gente quer mais é queimar gordura, então quando não se corre dando a vida e mais vintão, água de tempos em tempos resolve.

Dia de prova, a ideia é fazer força e não foi por falta de recomendação da treinadora que eu comi bola. Tá lá, registrado no Training Peaks: Água de côco ou Gatorade a cada 30 minutos. Uma cápsula de sal por hora. No Whatsapp também. Mas eu sei mais de mim, claro (que não). E lá no km 12, olhei rápido pro Garmin e no que levantei a cabeça, me deu tontura. Estava no tanque reserva, já era tarde.

Ali eu pensei: F*?#&! E a cada posto de hidratação me joguei em cada copinho de Gatorade, daqueles que afogam os mais afoitos que não querem perder nenhum segundo. No meu caso, virou sinônimo de: caminhe, hidrate e não morra. E do km 13 ao 21 foi só tiro, porrada e bomba.

Erro #4 – Estar no vermelho nunca é bom!

No meu Garmin, sempre deixo na tela que me permite saber se estou dentro da margem prevista para atingir o resultado alvo… Esse painel de controle indica uma faixa de ritmo verdinha, linda, esperança, que se mantivermos com fé e menos fogo no rabo, dá certo. Acredite, a gente chega lá!

Agora, veja bem. Se estamos no vermelho, de duas uma: ou estamos muito rápidos ou muito lentos. Ou seja, não é necessariamente bom de nenhum jeito. A minha pseudo sensação de consagração da primeira metade da prova me fazia acreditar que poderia ter acumulado alguns bons segundos, quiçá minutos, a fim de bater mais um sub-2. Mas pelos alguns motivos já previamente citados, deu ruim. O problema foi o que descrevo no erro a seguir.

Erro #5 – Quebro, logo desisto

Quando o meu pace começou a passar de 6 minutos/km eu perdi total controle dos meus pensamentos e a motivação. Comecei a fazer conta e não fechava mais. Claro que eu já tinha queimado muito combustível e ainda que o Gatorade tivesse entrado em cena, no fundo eu sabia que ia ficar cada vez mais difícil de recuperar. Diferente dos meus treinos longos de preparação, estava calor, mais de 20oC, então a desidratação estava escrita nas estrelas (como minha treinadora-poeta já havia profetizado). Fora que faltou força muscular para dar conta de um ritmo mais forte.

Erro #6 – Quem subestima, se arrisca!

Analisando mais friamente, eu subestimei a prova no geral e achei que se eu apenas fosse persistente e resiliente, tipo raça time, faca na caveira, dava para buscar. Mas se negligenciei diversos fatores como a suplementação, o calor, forçar logo no início e ainda assim tivesse me dado bem, talvez eu devesse ser estudada. Não é o caso, como acabamos de demonstrar.

Conversando com o pessoal do Por Falar em Correr no nosso grupo do Whatsapp depois da prova, uma coisa é fato: tudo depende de quanto estamos dispostos a arriscar e bancar o risco. No fundo, fica aquele lance do “E se?”. E se der certo? Show! Na hora não pensei que estivesse arriscando, ao menos não conscientemente. E é aí que mora o perigo

Erro #7 – No pain, no gain

Existe uma certa valorização da superação pessoal em que, sem dor, não há ganhos. Parece que se não formos ao limite, não entramos para ganhar ou não dermos nossos 150%, não valeu. Quando me deixei levar pela margem que eu tinha acumulado se esvaindo a cada km no meu painel de controle do Garmin, eu desisti. E não tem nada mais bad vibes que isso. Acreditar que não era dia e que eu fiz tudo errado.

Vou ser bem sincera aqui: senti vergonha do meu desempenho. Abracei todos aqueles pensamentos negativos que nos invadem nessas horas. Afinal, com tantos anos de corrida, o que aconteceu para eu deixar passar tantos erros básicos assim? Percebi que me diverti menos do que poderia. Porque a partir do momento que comecei a me julgar, ali eu realmente entreguei o jogo. Depois de cabeça mais fria e menos “emocionada” pela quebra, consegui enxergar oportunidades para o novo ciclo que agora é com foco na maratona de Chicago.

Também olhei com mais compaixão para os pontos positivos durante a preparação, pois voltar a ter consistência não estava fácil e mesmo assim dei meu jeito para ser coerente em relação a algo que eu dizia ser uma prioridade para mim: a prática da corrida. E também já identifiquei um plano de ação para evitar que os mesmos erros se repitam. Essa é a ideia universal da humanidade. Status: em andamento.

A grande conclusão: No Brain, no gain!

Isso mesmo: sem cabeça, sem ganhos. Você não leu errado. Aprendi recentemente essa expressão com a minha nova treinadora de fortalecimento muscular. Entenda cabeça aqui não apenas como o treinamento mental, a parada da neurociência e afins. Planejamento, estudo, auto-observação, tudo isso são ferramentas que nos ajudam a ir buscar a performance que desejamos. Histórico é legal, mas faz parte do passado.

Para onde desejamos ir na sequência? Qual é o sonho? Qual é a visão? E como chegaremos lá? Percebi que por alguma razão desconhecida, toda a preparação que eu coloquei nos treinos, faltou no dia D. Como diria Arnaldo Cesar Coelho: Não pode! Cheguei até a pensar: será que gosto mais de treinar do que de competir? Tema para outra crônica, possivelmente.

Um pouco de filosofia para terminar

Heráclito dizia que um homem nunca entra num mesmo rio duas vezes. Pois eu ouso dizer que esta regra se aplica a nós, corredores, em relação aos nossos ciclos de treinamento. A gente já conhece da missa a metade, mas a cada nova temporada, já não somos os mesmos. Pouco importa quantas vezes você pode completar uma mesma distância. É um jogo infinito, com erros, sim, mas muito mais ganhos e aprendizados. Cada vez, é sempre uma novidade e acho que essa é a graça de correr.

 

Ps.: A foto que ilustra a crônica foi tirada em casa mesmo e no chão porque eu estava me sentindo literalmente o pó da capa da gaita.

 


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